sábado, novembro 20, 2004

Estava apoiada no parapeito da varanda, com olhar sem foco. Ele a avistou, e com um sorriso: linda vista, não? Nessa altura se vê até muito longe. –Sim, mas não se vê além do chão. –Claro, não se poderia ver além do chão, ele emenda um tanto curioso com o porquê da frase –Eu digo que não se vê nada além do chão, quanto mais longe dele se está, não? De perto das árvores sou capaz de amar a floresta, de dentro do mar amo a água, porém os sobrevoando só consigo imaginar as diferentes quedas. Não lhe ocorre os mesmo? Ele deu um passo a trás um tanto desconfiado das intenções da moça, ok, ela é bonita mas nem tanto para arriscar uma queda do 18º andar. Ela viu seu movimento, porém continuou calma e completou: –Descer o elevador será uma vitória, não? Uma vitória contra o desejo de se atirar. Cada vez que desço pelo elevador é uma vitória da vida. –Porém o instinto básico do homem não é a sobrevivência? Não é o mais primordial de todos? –Pode ser. O desejo de se atirar das alturas talvez ainda seja um mistério, então. Mas olhe bem: então o senhor está aí a um passo de mim, e a um passo da beira da sacada. Se por acaso o senhor me desejar, e desejar, portanto se deitar comigo, e assim sendo desejar inconscientemente fazer um filho em mim e continuar perpetuando seus genes, mas ao mesmo tempo um desejo de se atirar tomar todo seu corpo de assalto, tão forte quanto seu desejo por mim...não seria misterioso? Nunca vi nenhum artigo antropológico a respeito. Todos proclamam o desejo de vida. Talvez o desejo de morte também seja uma força poderosa, talvez ele também nos mova em igual intensidade. Ele se afastou um pouco mais ainda, confuso com seus argumentos. Não via sentido neles, mas não podia negar que eles eram irresistivelmente atraentes...como olhar um acid...Ele riu para si mesmo. É, ha coisas que não conseguimos evitar, mesmo sabendo do desastre iminente.

Assim ele se aproximou novamente, e ao apoiar seu corpo no parapeito para ficar mais perto dela, alguns parafusos se soltaram e os dois caíram, imediatamente, de 18 andares.
Não falarei mais com você até que esse maldito silêncio acabe.
A anticriação

Estou parada em sua frente, há horas, posando para que você me escreva. Dancei para que você me compusesse, e desapareci para que me fotografasse.

No princípio era o silêncio, e no sétimo dia você me acordou.Voltei para sua costela.

quinta-feira, novembro 18, 2004

A concepção estrutural

A tomada de rédeas do tempo de sua vida havia se iniciado com a idéia de que era possível a reconstrução de sua essência a partir da reconstituição de sua forma mais original (o que ele via com sua essência inicial), a qual havia sido morta pelo conhecimento (e não pela efetivação) da necessidade de amadurecimento. (Ele a quisera matar, porém percebeu mais tarde que eles sempre o acompanharam, os gostos, as idéias, os medos, ligeiramente mais polidos ou discretamente guardados).

O processo de se tornar se iniciara na afirmação dessa existência anterior ao que ele julgava sua forma visível no mundo, acompanhado de forte negação da sua forma atual (que ele percebia violentamente moldada por vontades externas a ele ou que corrompiam a essência anterior, como se a forma concreta representasse a morte da idéia pura original), o passo seguinte da compreensão de si era a percepção da necessidade de retomar justamente essa forma madura, e descobrir nela as fissuras causadas pelos esforços do peso da matéria que ali habitava anteriormente. A síntese do que se é, lhe era claro agora, seria somente a perfeita junção dos desejos primordiais ao molde já suficientemente deformado pelas acomodações estruturais decorridas dos esforços sofridos no tempo.

As deformações sofridas nas estruturas arquitetônicas são previstas nos cálculos e fazem parte inconteste da obra. A verdade estrutural só ocorre, portanto, no próprio tempo. A nova etapa de sua formação era aceitar que as modificações ocorridas entre a concepção e a execução, com as violações e as intempéries são a própria revelação da idéia. Não há separação entre a concepção inicial do arquiteto que só existe em seu desejo e a forma final desgastada e corroída pelo pela gravidade, pelo relento, pelo uso que transita entre outros milhões de possibilidades que não a original: a obra será sempre uma unidade.

sexta-feira, novembro 05, 2004

Havia escutado, em outra época, algo que sempre o impressionara: ao se levar um tiro, durante um tempo, não se sente nada. Um baleado, foi como ficara sabendo disso, era capaz de correr uma distância razoável sem perceber o tiro que o atingira.

Há épocas em que o que se sente é tão forte que se pode jurar não estar sentindo nada. Eu digo, repito, saio berrando: não estou sentindo nada. É o tiro.

Há épocas em que a anestesia é tão forte que pode se jurar que a morfina do mundo acabou (a neosaldina e o tylenol também). Salve-se quem puder, saraivada de balas na casa ao lado.

segunda-feira, novembro 01, 2004

dias de cidade vazia

Tinha o corpo estirado após o livro lido, posto ao lado, enquanto sentia sobre si o cinza do céu daquela tarde. O cinza e o vento úmido sobre seu corpo a fizeram ter certeza: aquela tarde não pertencia ao calendário da cozinha, aquela tarde era velha e pertencia aos tempos paralelos da memória que guarda cada cheiro combinado a uma tonalidade de céu e a refere a tempos radiais. Sim, não circulares, não lineares, mas radiais: de sua memória o epicentro e dali em direção à eternidade os vários tempos formados de um sentimento único: tempo de começo, tempo de fins, tempo das mudanças, tempo da proteção, tempos de abandono. Algumas vezes tomava um atalho e se via numa das retas que não mais eram das tardes que se mediam pelos dias que se seguiam uns ao outros, mais dessas tardes eternas.

Ao perceber ter tomado novo dia antigo, tentou imaginar o que a havia levado para fora de seu tempo. Olhou mais uma vez o cinza: do ponto onde se encontrava deitada só podia ver o céu pela janela, mas sabia que esse era um dia de cidade vazia.

Dias de cidades vazias e cinzas são dias em que as crianças não podem brincar e são abandonadas ao próprio tédio por todos. As crianças abandonadas nos quintais em dias de cidades vazias sabem que não há bola, televisão nem nada que lhes afague a cabeça: dias cinzas não são dias em que as crianças podem existir, elas são somente as figurantezinhas inocentes que um mundo muito maior que elas, inalcançável por elas. Na cidade vazia tudo é inalcançável porque suas ruas se transformam no cenário do que há de mais desolador e temerário, que é o mundo que não pode ser vivido. Esse era o tempo de se perceber a real dimensão do mundo, para além do que é familiar.

Cidades vazias com casas cheias são especialmente insuportáveis. Ao contrário das cidades, as casas devem ter a paz que só o silêncio das paredes e dos tetos podem conter. Sabia que só podia se entregar a seu desejo, reconstituir suas lembranças, abraçar seus pensamentos, entregar-se a seu amor ou desespero nas ruas cheias e na casa silenciosa.

Quando acreditava em Deus só encontrava Deus na Igreja vazia. A igreja cheia se reduzia a simples funcionalidade da missa burocrática e tediosa, das obrigações seculares que não transcendiam nada. Porém a igreja vazia não mais continha função alguma além da morada Dele, e seus ecos e suas figuras de Santos tornavam a presença Dele tão material quanto o edifício. E nesse momento não precisava falar com Deus, pois Ele era justamente o meio pelo qual seus pensamentos propagavam. Seu Deus só existia em seu silêncio e nunca quando em companhia de outros.

Depois não houve mais Deus algum. Mas aquela tarde era uma tarde dos tempos em que havia missas e em que havia alguém observando todos os seus atos: como resolver a questão de não haver mais lugar para Ele na reta principal do tempo linear de sua vida, quando subitamente poderia voltar assim à tardes cinzas de cidades vazias na qual havia Deus, e a casa cheia da família indo e vindo, insuportavelmente ruidosa, enchendo todos os cômodos e sufocando qualquer tentativa de coerência (mesmo que morando sozinha em seu apartamento decorado a seu próprio gosto)? Resolveu-a abandonando completamente seu corpo sob aquele vento antigo e a garoa que naquele tempo não parou nunca de chover. Começou a sonhar, e em seu sonho estava abrigada por um sobretudo daquela chuva incessante, acordou novamente com sua imagem de sobretudo e pensou que nunca havia tido ou necessitado de um casaco desses. Havia um lago e ela mergulhava no lago vestindo sobretudo e cachecol.

Eis que já escurecia, a chuva a obrigara a fechar a janela, e o vento cessara: o tempo ficou suspenso longamente até conseguir se mover da cama e perceber a casa em que se encontrava, a fome que sentia a lembrando de seu corpo adulto e que ela mesma deveria preparar algo para comer.
Esses dias passam também. Todos os dias passam.