sábado, março 27, 2004

janela

Queria escrever um texto com defenestrar, que é uma bela palavra. Mas hoje não quero me defenestrar, nem a ninguém, porque hoje é sábado. E não chove, e não há nada no mundo todo, é só um dia longo e morno.

Posso dizer então que assim como gosto de defenestrar gosto de palavras grandes, e gosto de me definir por palavras grandes. Para meu epitáfio: ela mesma, agnóstica; acrofóbica; heteróclita, mas nem tanto; misantropa, às vezes, mas de bom coração.
Confesso que gostaria que esse fosse um bom momento de humor, porém toda graça acaba no caminho entre minha cabeça e meus dedos. Bons escritores devem ser pequenos. Ou possuir braços pequenos, como o Horácio.
Horácio?
Sim, o dinossauro da turma da Mônica.

Não venderia minha alma hoje, senhor. Você sabe, só vendo na alta.

segunda-feira, março 22, 2004

excerto

Nunca consegui entender porque alguns dias são longos demais, e a vida tão curta. Ou a arte é infinita para tanto tempo meu assim, perdido em bobagens. (e ainda tenho um tempo estranho de memória, que abriga tudo por impressões e não cronologia)

Hoje fez um dia de maio. A casa cheira azul enquanto Monk recende e tudo tem um gosto morno e silencioso de manhã de outono.



Ex Machina

Como se já não bastasse que toda vez que acesso esse blog meu browser acusa que há erros na página (como se eu não soubesse), agora meu contador resolveu entrar em contagem regressiva. Não deve ser um bom sinal.

sexta-feira, março 19, 2004

Dias de guarda

Sempre que faz um dia de sol eu penso que não se deveria trabalhar, que é um crime se ficar preso sob destroços de serviços insignificantes (eu não salvo o mundo antes da hora do jantar), enquanto o mundo pode ser bonito. Neles se deve caminhar (à esmo, objetividade é coisa de quem está no escritório). Neles se pode usar vestido de alcinha e ouvir músicas que falem de amor ao chupar um picolé.

Em toda chuva eu acho que não se pode sair de casa. Caso nevasse por aqui eu teria certeza, e só com os olhos para fora das cobertas, encolhida num canto da cama diria: não há nada que eu possa fazer, você sabe. Talvez dançar um tango argentino.

Madrugadas possuem um certo estado atmosférico ideal para se ouvir Satie, Piazzola, sonatas de Chopin. É uma pena se dormir nas madrugadas, um desperdício de silêncio.

E, além disso,
Em dias de sol a vida parece boa e confortável, como uma sopa. Bons para se ler poesia e o que for divertido, irônico, e que seja assim com aquela agudeza que só os espirituosos possuem. Ajuda a melhorar uma certa gripe da alma. Ainda mais na varanda ou perto de uma janela que tenha vista. É imprescindível se parar alguns segundos e respirar a vista.

Dias de chuva são bons para se ler policias, livros de homem, que dão vontade de sair por aí sendo durão, ou sendo a loura com olhos de inverno polar. Ou então o que tiver um pouco de melancolia, um certo desespero, uma vaga impressão de que nada vai dar muito certo, com aquele fundo cinza todo. Acompanha um bom vinho.

E no mais, tudo que doa, tudo que sufoque, tudo que sinta como se a mais profunda angústia ou miséria de se pertencer a esta raça pode ao mesmo tempo nos fazer felizes por ter sido descrita lindamente, deve ser lido à noite, enquanto os inocentes, os honestos e os justos dormem.

quinta-feira, março 04, 2004

Não pule do décimo andar, meu bem
O senhor da padaria sabe que a todo dia você comprará pão as sete horas
Não faça isso
O menino que fica na esquina sempre que te vê vem correndo, já conta com seus 50 centavos
Você sempre foi generoso, meu bem
Você emprega uma moça, que vem uma vez por semana
E dela não exige muito
Ele sentirá sua falta, querido
Você é o único da rua que cumprimenta o carteiro
É um alívio não ser invisível
Não vá tão cedo, amor
As samambaias estão nascendo, e a orquídea precisa de cuidados
Não se esqueça do gato, amor, tão velho, quase cego, só conhece essa casa, e não poderá compreender outra
Ausências são sempre longas, enquanto sua presença sempre causa uma boa impressão: tão polido, tão cortês.
Não pule agora, que chove e tem sereno
E muito tempo ainda
Acordou cedo, no horário habitual. Foi ao banheiro, lavou-se, olhou-se no espelho: o mesmo de sempre.
Estranhou o silêncio, pois àquela hora, como o dia amanhecendo, toda a casa estaria se preparando para o dia. Saiu do quarto em direção ao café. Silêncio. Num gesto incomum decidiu abrir devagar a porta do quarto do vizinho, para verificar qual a razão de não haver barulho algum pela casa. Olhou em volta, não viu ninguém. Até, como um susto, dar-se conta do que havia sobre a cama, sob os cobertores, como que se escondendo: uma barata gigante.
Riu-se: trote kafkaniano é demais. Não se deu ao trabalho de discutir com o colega de quarto, e pensou que já estava velho par trotes, devia envolver algum novo habitante não conhecido da casa. Continuo seu caminho procurando café. A senhora responsável pela pensão não se encontrava, estranho. Ela sempre estava espiando tudo em algum lugar, inclusive quando trazia alguma menina para casa. Decidiu sair para o trabalho sem café, e nem percebeu que as ruas estavam vazias. Até cruzar por uma rua na qual havia um vigia noturno ao qual cumprimentava. Não estava. Curioso, pensou se deveria ser algum feriado ao qual havia esquecido. Olhou então na guarita: uma barata gigante.
Pouco tempo depois entendeu por fim que toda o mundo havia acordado metamorfoseado, com a exceção dele. Porquê, meu Deus, havia sido esquecido?
Não demorou muito para que todos percebessem que não estavam sozinhos em sua nova condição. Saíram todos para rua então, em comunhão de sua novas experiências. À ele só coube assistir ao espetáculo. Viu toda vizinhança se libertar, em festa, de qualquer humanidade.
Sua vida continuou a mesma.

terça-feira, março 02, 2004

Hoje me sinto em silêncio.

E cada palavra interrompe a sensação que me diz que sou viva para além das coisas que pouco me importam, e mesmo assim se impõem como se necessárias, tanto quanto uma avalanche, em recomendações e diretrizes e normas.
Falar me rouba um pedaço: sou inteira apenas nesse momento em que o universo todo não deseja explicação, só é.
Não almejo solenidade. Quando criança me contaram que a quietude era a virtude das igrejas e dos túmulos, porém as igrejas e os túmulos sempre compreenderam significados que não posso alcançar.
Não transcendo em silêncio, sou pura matéria que deseja ser presença como qualquer matéria, e teme a solidão, a doença e a morte.
Mas nele me transponho da vulgaridade e da dor de cabeça, e passo a residir num espaço muito maior que o que me contém.
E, somente em silêncio, posso compartilhar o todo de que sou feita.

Não gosto de gente que tem medo do silêncio,
Eles tem medo de serem compreendidos de uma maneira que não poderiam suportar.