segunda-feira, setembro 27, 2004

aujourd´hui

ou do dia em que amanheci no Rio de Janeiro e depois fui à aula de francês na Savassi

eu fiquei com vontade de guardar como um segredinho, só pra mim, e não compartilhar com ninguém.

ou porque faz sol e calor aqui, acolá, e por mais que eu não demonstre muito, eu fiquei feliz demais. Quando eu contei disse que havia ganhado um presente. Sim, foi um presente que você me deu.

Mas estava um dia bonito demais para essa mesquinharias.

Alma de flor
Antonio Caetano

"Minha alma faz fotossíntese", me diz a Juliana, feliz com Belo Horizonte ensolarada. Juju estava meio triste, nem sabia bem porquê, os olhos perdidos longe, mas num longe que só os mineiros alcançam, mesmo os mineiros por adoção, como é o caso da Ju, que nasceu no Paraná, mas quando se deu conta, já era mineira de perder os olhos em lonjuras que outros sequer vislumbram. Pois é preciso ter longe os olhos pra se olhar lá no fundo de si e perceber que se tem alma de flor.

Uma alma que se alimenta do sol, do céu azul, do sussurro da brisa e que assim aconchegada no mundo, que é só um dia, este dia, agora, pode fazer pouco das palavras, da falsa eternidade delas, sempre tão ambíguas e tão metidas a donas da verdade...
Mas o que têm as palavras a dizer de um dia como este, que alimenta a alma e a põe à flor da pele, todo corpo silenciosamente, deslizando pelas ladeiras de Belo Horizonte, em comunhão com o universo inteiro?

Tamanha inteireza não está ao alcance das palavras, escravas da sucessão, das histórias mal contadas em começo, meio e fim - como se isso houvesse, como se não fosse tudo simultâneo a tudo, num enorme turbilhão.

Mas a gente só sente isto quando a alma se faz corpo e assim cumpre seu destino de criar (e conservar) a sensual eternidade do agora - que é só o que há, sempre.

* * *
Pois é, Ju, somos isso que chamam de almas gêmeas. Porque eu (ou minha alma, tanto faz...) também me alimento do mesmo sol que aqui parece vir do mar bem cedinho, em espantosas explosões de cor que um dia já me valeram um poemeto:

Eu vi o violento vermelho
Virar-se do violeta ao azul:
Era o dia!
Novo sob o véu do orvalho,
Vivo,
De novo vindo do divino ventre da Natureza.

Pois eu também andava meio triste, me sentindo morto por dentro, esquecido do sol. Acontece, às vezes, da gente olhar a própria vida com olhos de não que apagam qualquer sol que possa ver para instaurar uma escuridão de abismo. Pra quê? Um tênis novo pode mais às vezes do que o melhor psicanalista: a vida não se resolve com palavras. A vida se resolve em esquecimento, o genuíno esquecimento de estar aqui, agora sob o sol que alimenta nossa alma de flor.

quarta-feira, setembro 22, 2004

Já que nunca tatuei minha pele, não garantindo como renda post- mortem a sabe-se lá qual parente sua venda para japoneses com idéias estranhas de decoração, decidi vender algo cuja renda pudesse aproveitar em vida. Antes que alguém tire conclusões precipitadas, o que vendi foi minha alma para a ciência. Porque, como morro um pouco a cada dia, por diversos motivos, conhecidos ou não pela medicina, asseguro parte do insumo para o melhor aproveitamento desse tempo que passo vivendo, hum, em frente ao computador.

Até agora os cientistas chegaram a algumas conclusões em seu estudo, das quais eu pedi autorização para publicação nesse blog e ela me foi concedida, pois, como foi assegurado pela Drug and Food Administration, ele não causava males auditivos aos que não enxergam.

- Minha alma faz fotossíntese: conclusão que aparentemente não tem relação com o fato de eu ser vegetariana, porém é muito clara, tendo em vista que em dias escuros minha alma não consome praticamente nenhum gás carbônico. E, é óbvio, em falta de luz continuada, ela murcha.

- Minha alma também precisa ser regada. Sempre. Mas minha alma não é uma flor. Pelo menos não que se cheire.

- Sua entropia cresce no sentido do passar do dia. Ela produz seu próprio caos, com pouquíssimos elementos.

- Minha alma dá longas voltas sem me consultar, e, como um marido canalha, as vezes some sem deixar nem sequer um recado. Mas isso não precisava de um cientista me contar, ora. Mas eles descobriam o que ela faz quando some: ela lê romances Sabrina, a desgraçada, depois volta com idéias açucaradas sem que eu soubesse de onde. Ela também assiste novelas mexicanas, me revelando dramas nunca dantes concebidos em meu cotidiano, e lê revistas femininas, e depois insiste para que eu compre bateladas de roupas, sapatos e cosméticos que eu nem sabia que precisava.

Ainda não concluíram quando ela nasceu. Ainda não concluíram se ela tem prazo de validade. Outras conclusões serão publicadas em breve na Nature. Mas lá eles não a chamarão de minha alma, mas sim de pobre-alma-objeto-de-estudo.

segunda-feira, setembro 13, 2004

Como sempre, abro o Word porque tenho que escrever nesse momento. E como tem acontecido sempre, não tenho nada o que dizer. Mas tenho que escrever, então liguei o computador, dei duas voltas pelas casa, tomei água, passei a mão no cabelo, já está oleoso, a franja nem é mais franja, está um topete engraçado meio pra cima meio caído para o lado onde deveria estar. Tamborilo as mãos na mesa do computador.Penso, tamborilo de novo. Essa sensação tem sido pior que a insônia. Durante a insônia milhões de pensamentos vão ocorrendo: lembranças, o esmiuçar de fatos minúsculos, agigantamento de coisinhas de nada. E no meio algo que eu mesma me pego surpreendida a me interessar. Se sobra alguma idéia para após o sono, ela deve valer. Mas agora não há nada. Tamborilo os dedos, mas não toco mais piano há eras.
Há dias não tenho insônias. Faz bem, a pele agradece, os horários marcados também. Porque só espero, não tenho sentido que há mais nada a fazer. Espero porque aceitei o que tenho a fazer com minhas horas acordada. Ligo o computador. Não sinto angústia. Só sobrou aquela, a velha de sempre, que de repente se tornou parte de mim, como um órgão qualquer. Que sou só eu dentro de mim, e o nada a fazer de tudo que me tornei, o que transformar do nada que ainda construí, o tempo todo a continuar pesando sobre o que já perdi. Talvez eu tenha medo de perdê-la tanto como da amputação. Só há ela a fazer uma sombra sobre meus olhos que creio dão alguma distinção. Para que eu possa ser levada a sério, porque as pessoas delicadas, que falam baixo e pouco, e às vezes alto e muito, que andam vestidas de saias rodadas, que tem medo de envelhecer, que pensam para falar, que falam sem pensar e se arrependem para sempre, muito, essas, na minha época, não eram levadas a sério. Durante muito tempo eu fingi que era dura, mas não era, e toda a dureza me doía e pesava. Aprendi que não gosto de palavras duras nem gestos rigorosos, e me livrei das palavras duras e dos gestos duros. Porém nunca me livrei do desejo de corresponder as expectativas, e por isso paulatinamente pus por terra tudo que se esperavam de mim, para me ver tão completamente só na falta de espelho das esperanças alheias, que posso ser uma pessoa inteiramente nova. E sê-la é simplesmente voltar a ser quem eu era com quatro anos, quando pela primeira vez senti medo, amor, e medo por sentir amor, e gritei alto para que percebessem que meu irmão havia se soltado e engatinhava para a escada rolante, a tempo das mulheres largarem seu pacotes e correrem para o menino.Voltar a gritar de medo de perder e de gritar em público por que se ama. Desci o morro de grama rolando. Trepei na árvore. Vesti meu vestido de flores rodado, abrir os braços contra o vento e rezei para que ele me levasse.

Volto a ser eu mesma com quatro anos, fecho os olhos e peço.

sábado, setembro 11, 2004

Assim alguém me contou mas não me lembro quem e muito menos onde:

O problema do álcool é que eu sempre me acho uma pessoa melhor quando bêbada, porém quando acordo, descubro que sou melhor é calada.

Notas de um dia em que a vida não engorda nem dá rugas:

Aos que não me viram aos berros, agradeço assim, fingindo que sou uma moça comedida:
Ao Renato César, que foi para a Inglaterra e mata a nossa saudade com um ótimo diário de viagem, sempre com aquele humor que não deixa pedra sobre pedra, ao Manuel, do H Gasolim Ultramarino, um lindo blog com delicioso sotaque da terrinha, que eu descobri completamente por acaso e, qual não foi minha surpresa? Havia linkado o mas, como assim quietinho, lá do Além Tejo. E finalmente à Júlia, que não só mandou um link daqui, como recomendou e mostrou um post meu no lindíssimo nove de copas, me fazendo literalmente chorar aqui em casa.

sábado, setembro 04, 2004

Novas condições psiquiátricas ainda não catalogadas pelos meios competentes

Todos os dias aprendemos o significado de uma nova condição psiquiátrica gerada pelo stress do mundo contemporâneo. Os pobres seres humanos, diante de um mundo cada vez mais competitivo, poluído e barulhento se defendem em suas cabecinhas das maneiras mais improváveis. Estou aqui catalogando mais alguns novos distúrbios que eu ainda não vi discutidos no fantástico, no Jô, no 60 minutes e nem na Caras, mas garanto que deveriam estar lá:

1-Hipoatividade: Os pacientes dessa síndrome são capazes de permanecer horas a fio sem fazer absolutamente nada. Muitos nem ouvem música, ou folheiam uma revista, só ficam parados olhando o horizonte (ou uma parede branca). Diferenciam-se dos autistas porque tem habilidades sociais. Esporadicamente.

2- Distúrbio do Excesso de Atenção: Essa síndrome é observada em pacientes capazes de dedicar horas, dias ou sabe-se lá quanto tempo a remoer, esmiuçar, analisar cada ângulo de uma situação. Similarmente aos hipoativos, também são capazes de passar bastante tempo aparentemente sem exercer nenhuma atividade. Em situações de sociabilização, normalmente percebem cada atitude de seus pares, cada detalhe do ambiente em que se encontram. Falam pouco, evitam brigas e em termos de decoração normalmente preferem o minimalismo. Não suportam barulho.

3- Síndrome da Falta de Pânico: Não confundir com intrepidez. Portadores dessa síndrome não raramente são acrofóbicos, por exemplo. Porém os portadores desse distúrbio apresentam comportamento bastante anômalo para os padrões de vida em metrópole: andam sozinhos de madrugada, esquecem a chave de casa do lado de fora, andam de carro com a janela aberta. Freqüentemente conversam com estranhos e comem em lugares pouco recomendados no baixo centro. Muitos deles também fumam, ingerem alimentos ricos em gordura e são sedentários.

quinta-feira, setembro 02, 2004

-Eu estou indo, você está me deixando ir?

Só ouviu o silêncio e o espaço entre seus corpos aumentar.

Percebeu sua imagem se dissolver, e acabarem palavras, cores e cheiros. Parou numa sala branca, de fundo infinito em todas as dimensões. Isolada de qualquer som, logo pode ouvir o sangue correr nas suas veias. E percebeu que a gravidade lentamente aumentava, jogando seu corpo para baixo. Deitou-se de bruços sentindo o peso de cada célula sua enquanto se enterrava no chão. Era bom sentir o peso de cada célula do seu corpo, naquele lugar onde não havia mais nada. Continuou nessa posição, esperando ser sufocada pela sua própria traquéia, devorada por suas tripas, e esmagada pelos seus membros, enfim. Depois de algum tempo, viu um buraco no chão. Arrastou-se lentamente até que pode colocar a cara nele, e sentir o vento: olhou para o buraco, um espaço, e nada. Tudo branco como na sala, nem perspectiva que criasse vertigem. Então nesse momento não sentiu vertigem, mas logo percebeu a infinitude e seu desejo de se atirar e recuou um pouco, tonta e enjoada. Aproveitou o buraco para fumar um cigarro e soltar o fumaça para o infinito. Engraçado sentir escrúpulos de fumar em lugares fechados numa hora dessas.

Passada a tontura, começou a imaginar o pulo como algo mais concreto, considerando então racionalmente os prós e os contras. A favor do pulo o óbvio: a gravidade da sala poderia continuar aumentando indefinidamente, devido a falta de som já podia ouvir seus pelos crescerem, e todo aquele fundo infinito o deixava constantemente sem direção. Mas e contra, então? Contra havia a ausência de si mesmo boiando para sempre, ou se perder, ou pior: chegar a outro lugar onde houvesse som, cheiros e cores. Mediu a largura de seus ombros, viu que passaria no buraco. Só precisava dar o impulso e deslizar de cabeça.

Deslizou. Sentiu-se então liberta da gravidade da sala infinita. Rodopiou algumas vezes, e por fim ficou estendida de costas, caindo.

-Estou soltando de sua mão, você está me deixando cair?

E lembrou-se de como se prendia a suas palavras, mas ele as soltava, e quando mais se amarrava a elas, mais ele as deixava ir. Então ela, amarrada as palavras, jogava cordas tentando prender-se ao corpo dele, mas não havia corpo, e as cordas não o amarravam. Ela ficava então se debatendo entre as amarras, presa as palavras que não estavam presas a nada. E ele sabia quando dar as sentenças o peso que queria, a trazendo de volta. Sempre amarrada, mas nunca a ele, sempre com um abismo sob seu corpo, indo e voltando.

- Eu cortei as cordas, você vai me deixar partir?

E seu corpo, de costas, foi caindo lentamente como uma folha, e pousou suavemente no chão de uma cidade. E percebeu que era uma cidade, e que havia ruas e pessoas e árvores que desprendia folhas que caíam como ela sob o chão. Levantou-se e seguiu pela rua, após tanto tempo, andando.