segunda-feira, agosto 16, 2004

A história do coadjuvante

Era uma vez...

Era uma vez pressupõe que será contada a história com final feliz. Adianto que a história do coadjuvante não possui um final feliz.
Porque? Interroga-me com olhos mareados a pobre moça sensível.
Ora, minha querida, a história não tem final nem feliz nem trágico, simplesmente não tem fim. O fim é para as grandes personagens, com sua grande saga, dolorosas perdas e lacerantes amores. O coadjuvante só as presenciou: ele esteve no casamento final, foi testemunha no duelo, aconselhou o amigo apaixonado, bebeu o vinho da festa em que se conheceram. No mais ele viveu uma vida às vezes feliz, outras triste. Amou, foi amado, foi traído, abandonado, amado por outra a quem não quis. Finalmente se casou com A coadjuvante. Teve dois filhos, que tiveram outros filhos. E uma filha, que morreu muito nova, a pobrezinha, não lhe deixando mais netos.

Ora, então houve um final: um dia ele morreu.

Sim, ele morreu. Morreu dormindo, em sua casa, de infarto do coração. (todo infarto não é do coração? Bem, de qualquer forma, infarto do coração é mais bonito dito assim, em toda sua extensão).

Porém isso não é fim de história, que vocês sabem muito bem.

quarta-feira, agosto 04, 2004

Ilustríssimo Doutor

Creio que existam outras, porém agora só me lembro de auspício. Auspício é uma palavra que na minha semântica particular significa exatamente seu oposto: para mim é mau agouro. Cessar será sempre o que é, porém há algo de profundamente cortante no sibilar do que cessa: o tempo suspenso, o universo é imóvel e tudo se congela. Cessar supera seu significado. Arar nunca me lembrará grandes máquinas em campos de soja, é bucólico e se situa no alto de uma colina. Já semeadura não tem nada de pastoril, tem a rigidez de um trator.
O som. E, como soa...

Ao cessar a aragem, sentiu a brisa em seu rosto: eram os auspícios de agosto.

Prevejo uma tempestade. Nuvens negras, raios e trovões. E provavelmente um Heathcliff atormentado surgirá a qualquer minuto no alto de sua montanha.


...

Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança é um filme bom. Muito bom. Numa das resenhas que li sobre o filme (todas, felizmente, após tê-lo assistido) o resenhista comentava de como o roteirista, Charlie Kaufman, amadurece em um trabalho que consegue conciliar seu domínio da linguagem e os malabarismos textuais que impressionaram em seus outros filmes com sensibilidade. É o que acredito sobre o amadurecimento: apreciar não só a habilidade, a técnica, mas o que realmente há de beleza. Quando o virtuosismo passa a ser o pano de fundo que possibilita a expressão elaborada do que se pretende dizer. Isso só se dá com o tempo. Adolescentes adoram truques, pois estão começando a descobrir a própria inteligência, e se impressionam com o fato de que pensam por si, e não mais pelos professores ou pelos pais. É um momento magnífico: porém é só o início da compreensão das coisas. O elogio da destreza para mim é muito pouco, dada minha idade avançada. A habilidade deve existir no bom artista como condição primordial.
Sou uma velha sentimental.