quinta-feira, outubro 28, 2004

Sísifo

Sorriu enquanto descia a rua estreita e pouco iluminada. Sorriu por saber que era aquela rua pequena, e não qualquer outra, que foi tomada há muito tempo. Olhou as árvores que mal podadas cobriam os poucos postes que restavam acesos. Graças a Deus essas árvores se encontram mal podadas. Graças a Deus não há a luz amarela indecente da avenida. A luz pornográfica.

Lembrou-se de um jantar no pequeno e discreto restaurante. Lembrou-se dela, tão confortável em saltos tão altos. Lembrou-se de como pouco confortáveis lhe eram a gravata e o paletó, naquele dia quente. Não, mentira, não lembrava mais como era desconfortável, somente se recordava de no dia haver pensado nisso, ao vestir o paletó, e ela em seu vestido decotado, porém a idéia de que ela era mais feliz desvaneceu levemente com a visão de seus saltos. Só num instante, já que a imagem dos saltos não permitia grandes considerações a respeito de seu conforto, aos diabos com seu conforto, ela estava belíssima. Mas não importava agora, porque não havia mais o restaurante pequeno e discreto.

Andou mais alguns passos e viu novamente a padaria/armazém/Deus sabe onde se guardam seus ratos.

Lembrou-se de várias paisagens, lembrou do desejo de ver outras paisagens e de todos os projetos de fuga. De todas as tentativas de fuga.

Foi naquela tarde. Foi quando próximo da avenida não quis a avenida. Num movimento brusco, virou o carro. Em algum ponto, saiu do carro. Foi quando pela primeira vez pegou a rua estreita. Demorou a compreender a rua estreita, e suas árvores como velhos barbudos. E sua escuridão cega e velha.

E foi quando não haveria mais o carro, o restaurante, ou ela. E o tempo se extinguiria e seria para sempre o caminhar pela rua estreita e pouco iluminada. E só as fases da lua mudariam, iluminando mais ou menos por entre as folhas nas copas das árvores mal podadas.

Após caminhar durante algumas horas pela rua, começou a perceber os primeiros sinais: primeiro viu o mesmo velho sentado em uma varanda que já havia visto anteriormente. Não, deve ser só outro velho. Velhos às vezes são similares demais para que alguém que caminha tão entretido com seus próprios pensamentos perceba a diferença. Porém mais a frentes passou pelo mesmo jogo de amarelinha das meninas. Gritou as meninas. Elas não olharam. Foi a quando cogitou pela primeira vez a possibilidade da rua ser circular. Decidiu que prestaria atenção nas fachadas. Passou a percebê-las. As tonalidades entre azul, rosa, amarelo e verde, com uma camada de tempo que as tornavam a quem passa despercebido a mesma cor, agora já eram completamente distintas. Todos os traços das fachadas se tornaram singulares: as heras na varanda de uma, o nicho com um santo no frontão da seguinte, um sofá de balanço no jardim de outra.

Imaginou como poderia se dar a circularidade da rua, que era uma reta constante: a compreendeu, portanto circular como a própria terra, com seu horizonte finito. Tendo confirmado assim a possibilidade verdadeira daquela rua se constituir num pequeno mundo imutável, no qual estava condenado a permanecer, continuou. Olhou o meio fio, olhou o céu. Era noite de lua cheia, então podia perceber os musgos nos paralelepípedos, os insetos, as gotas d´água.
Continuou na eternidade da memória do que poderia ter sido.

segunda-feira, outubro 25, 2004

Agridoce e os dias passam e parece que o destino de tudo é o tédio, o fim último de toda sensação. Porém me deparo falando sozinha porque sei exatamente para quem se destinam meus diálogos sempre cuidadosamente construídos. Então se vão embora as frases todas e eu só escuto atentamente. Docemente.

Pega na minha mão e confia.

Felicidade são os pequenos momentos em que parece que tudo está no caminho certo: ainda não deu, mas com certeza vai dar tudo certo alguma hora. Encontro a felicidade na possibilidade de ser feliz.

Levanto da cama.

Naquele segundo tudo parece ter se encaixado: todas as palavras e as coisas quem gravitam livres demais foram adestradas e tomaram seus devidos postos. Finalmente foi encontrado o santo gral da razão pela qual se vaga por essa terrinha mais ou menos. Por um segundo. A alegria de viver é enorme nesse segundo. O amor é mais profundo e as palmeiras gorjeiam por todo o lugar.

Nunca mais perderei o caminho de casa.

Estou no ônibus e o ônibus pára, vejo um drive-in com uma placa: temos boxe especial para pedestre. Depois se preocupam em salvar o português das influências externas. Como se em português do Brasil tudo não adquirisse seu próprio significado sempre a beira do absurdo como quase todo lugar por onde ando.

Em algum dia um casal desceu de mãos dadas naquela parada de ônibus.

Eu segui meu caminho, aquele não era meu ponto. Há ainda uma longa distância até meu destino.
Há um enorme medo diante de qualquer possibilidade, mesmo diante da possibilidade de que tudo pode melhorar, porque há um grande medo diante da possibilidade perigosíssima que é a de continuar.

Keep walking. Whisky é muito melhor que champanhe.

Em um posto de gasolina desativado existe um anúncio da venda de um avestruz. Alguém me propõe comprar um avestruz em um posto de gasolina que não vende mais combustível, nas manhãs sonolentas e invariavelmente cinzas, porque insuportavelmente distantes do meu edredom. Desconfio que esse anúncio só exista nas manhãs.

Agradecimentos para Gisele e Noronha, obrigada pela lembrança.

quinta-feira, outubro 21, 2004

Quando você sabe que está ficando velho: você um casal de seus quatorze ou quinze anos a se beijar e você se sente levemente desconcertada, incomodada: eles são novinhos demais pra isso, olha que carinhas de neném. E você se lembra de sua adolescência e finalmente compreende seus pais.

Quando você percebe que vai demais ao mesmo lugar: Ao entrar no táxi, na porta do bar, você começa a dar indicações: moço, pega a avenida...Hei, podexar que eu já sei onde você mora. E você segue em silêncio até sua casa.

Quando você sente a delicadeza da caridade (e imagina que sua pobreza está ficando aparente): Você correu até o ponto de ônibus, entrou esbaforida e ao abrir a bolsa descobre que esqueceu a carteira. Você faz aquela cara de sem graça e pede ao motorista que abra a porta, ao que o cobrador retruca: esse ônibus sai agorinha... Fazer o que, moço. Você vai passar o dia fora? Não, só vou à faculdade assistir uma aula e volto. Então toma aqui: E volta com dois vales-transporte na mão: preocupa não, depois você me devolve.

E finalmente, um dia você descobre que mesmo no anonimato da cidade, sentada aos prantos em um banco numa região de comércio movimentada, ainda existe humanidade por entre o trânsito todo, e alguém põe a mão no seu ombro de fala: preocupa não, minha filha, não há nada que não tenha jeito nessa vida. E te estende um copo d´água com açúcar, bebe minha filha, bebe que melhora.

sexta-feira, outubro 08, 2004

Cada época com suas manias

-Então eu lia muito, e meu pai começou a falar para eu parar senão eu ia ficar louco.
-Louco?
-É, naquela época era assim, a moda era falar que quem lesse muito ia ficar louco.
-Era comum?
-Sim, era a moda naqueles tempos. Igual hoje em dia a moda é dizer que a pessoa vai ficar flácida e sedentária e enfartada.
-A repressão nunca termina.

quinta-feira, outubro 07, 2004

De como um dueto virou um duelo e outros trocadilhos inomináveis
Mas eu ainda preferia um tango

Todas as mensagens que deixei em horas indevidas com mensagens indevidas se deveram ao uso abusivo do álcool.
Perfume leva álcool. O Merthiolate que ardia levava álcool. Pode ser mentira. As mensagens que deixei em horas indevidas não se deveram. Não devo, não nego.

Branco sobre branco. Acordei me sentindo a tela de Malevich. Uma sugestão de que se é. A insinuação de desordem. O branco sobre branco não é a pureza, é o que não se via revelado sub-repticiamente.

22 novas mensagens, depois 17, mais 35, mais 9 e não há mais viagra natural o suficiente no mundo.
Atualizo a página, nenhum e-mail novo. Atualizo a página, atualizo, atualizo. Nenhuma mensagem nova. Porque precisar tanto de uma palavra que seja dirigida só a mim nessa noite? Preciso que alguma voz ecoe espontaneamente, de um pensamento que não cruzou com meus olhos, só cruzou com minha imagem de pensamento nessa noite em que na me encontro. Eu existo, que seja um toque, material como eu que teclo, atualiza, atualiza, nenhuma mensagem nova.

Se fosse derramada uma mancha vermelha, seria um atentado. A mancha vermelha na tela branca é como a mancha vermelha no lençol branco da moça de outro tempo, mas aquela que não havia. A mancha vermelha não é a desordem sutil, ela existiria tão intensamente que não seria mais possível perceber o branco sobre branco, só o vermelho no fundo neutro. Deve-se esconder a mancha vermelha.
Mas o que na vida, que não na arte, se pode amar mais: a mancha vermelha que revela o erro, ou o branco sobre branco que só o insinua?


Não atualizarei mais nenhuma vez, não escreverei em vão, não serei eu agora. E pronto: sou eu novamente, pois nesse silêncio ouvi minha respiração, percebi minha presença. Já não posso mais me ignorar.

sábado, outubro 02, 2004

Amanhã é dia de eleição,
Ou de porque eu choro vendo o horário político eleitoral

Dói muito para mim perceber a esperança nos outros. Machuca. Cada vez que alguém fala algo como: temos que tentar mudar! não podemos esquecer nosso poder de decisão! somos cidadãos!, eu morro um pouco. Tenho uma vontade de pegar o tal cidadão no colo, como uma criança, e lhe explicar: não, queridinho, você não vê? Nada vai mudar...nada...agora, tome esse pirulito e vá brincar com seus amiguinhos, ok? Apague essa esperança de seus olhinhos, tome aqui um lencinho.

E como sou uma alma sensível, entrarei na seção eleitoral de olhos fechados.